


No livro Berlim Alexanderplatz (1929), Alfred Döblin narra a história de Franz Biberkopf, um ex-presidiário que tenta ser “decente”. A obra é uma epopéia urbana, em que são relatados os golpes sofridos pela personagem e, em conseqüência deles, suas desilusões. Biberkopf vai descobrindo que não é fácil atingir seu objetivo; a maldade dos inimigos chega ao ponto de ele ser atirado para fora de um carro em movimento e, por causa disso, perder o braço direito.
Döblin poderia contar essa história utilizando uma técnica tradicional, tal como a empregada nos romances do século XIX. No entanto, ele opta por uma linguagem que representa fragmentos de episódios. Compete ao leitor reunir os “estilhaços” em que se apresenta a narrativa, se quiser compor uma paráfrase. De qualquer modo, sente-se que a linearidade e a coesão das fábulas estão definitivamente perdidas. Assim como um vaso colado não é o mesmo de antes, certas narrativas trazem as marcas da perda da totalidade.
O narrador de Berlim Alexanderplatz pode ser visto como a personificação de uma sensibilidade atenta ao pulsar de uma realidade complexa e, no caso da Alemanha, durante a frágil República de Weimar, anunciadora da catástrofe nazista. Esse narrador luta por estar em toda a parte, dentro e fora da consciência das personagens; percorre as ruas, os bares e o matadouro; revisita o texto bíblico e a tradição oral; constata a presença da morte preparando o sacrifício (em vários pontos da história, aparece, como um refrão, a frase: “Ceifeiro é, de morte chamada”); em suma, empenha-se vertiginosamente pelo máximo de onisciência possível.
Embora o exercício da sabedoria narrativa, tal como se apresentava nas narrativas tradicionais, tenha se tornado impossível devido à privação moderna da “faculdade de intercambiar experiências”, a narração de Berlim Alexanderplatz empreende um retorno ao relato épico, para contar a história de Franz Biberkopf. Mas, neste caso, trata-se de uma narrativa que expõe suas raízes urbanas, fincadas na Zona Leste da Berlim dos anos 1920. Desse modo, o ponto de vista do narrador (ou sua multiplicidade de pontos de vista) posiciona-se no lado de dentro do setor proletário e pequeno burguês da cidade. O recurso de estilo adotado para a representação estética desse contexto foi a montagem, tal como assinala Walter Benjamin, em “A crise do romance”. Mas o “sábio” a que Benjamin se refere não é a personagem épica; é a desencantada personagem romanesca, “amadurecida”, detentora da “sabedoria” burguesa; o herói burguês convive harmoniosamente com a miséria. Enquanto sentia a “fome de destino”, Franz foi punido severamente. No final do livro vamos encontrá-lo resignado, já moldado pelas forças do destino urbano e gozando da melhor vida que a sua condição lhe permitiria: agora ele é “auxiliar de porteiro numa fábrica de média dimensão”.
Sendo assim, a montagem döbliana, embora tenha resgatado a narrativa épica, não tem o caráter passivo do poeta que apanha conchas na praia; ela é técnica de enfrentamento, pois, levando o mundo externo a se manifestar, obriga-o a revelar toda a iniqüidade que lhe é subjacente. Portanto, a força de representação dessa epopéia moderna, que é Berlim Alexanderplatz, provém justamente de sua forma: por meio da montagem, Döblin manifestou profunda sensibilidade e consciência de determinada realidade urbana — em que já se fazia sentir o perigo da perversão coletiva, fomentada pelo nazismo.
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